Flávia Germano Barra.
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Andávamos sem saber que andávamos
Andávamos sem nos procurarmos, mas sabendo que andávamos para nos encontrarmos.
(Julio Cortázar “O Jogo do Mundo”)
Uma exposição pode ser entendida de duas formas: rodeando-a ou entrando nela. Por outras palavras, pretendendo conhecer a sua matéria/objecto ou visando conhecer a sua duração. Flávia, nesta exposição, coloca todo o seu ser na segunda. Interessa-lhe suspender os interesses práticos e aprofundar-se na sua duração, no tempo, na espera. É aqui que a obra se dá. Uma duração que surge enraizada numa memória maioritariamente espiritual e não física que existe sob a forma de lembranças independentes. Ao visionarmos o conjunto das obras expostas entramos em contacto com a lembrança pura do seu “Eu profundo” e com a realidade das coisas fora do que se move, do que muda, fora dos nossos sentidos e do que a consciência percebe. As obras são lembranças puras porque pertencem a um passado latente que se conserva em si e para si mesmo e que só no momento em que se actualiza no sujeito, na forma de imagem-lembrança, se manifesta. As esculturas verde líquenes presentes na exposição são um bom exemplo disso. A totalidade do passado sobrevive aos conteúdos do presente nas imagens-lembranças, pois para a artista o passado não é aquilo que já não é ou que deixou de existir, mas aquilo que deixou de ser útil.
Estas lembranças-inúteis são detentoras de seu próprio tempo rompendo significações clássicas, percepções comuns e modelos de campo social de um determinado tempo histórico. A artista ao encetar este caminho abre espaço para uma variação das dimensões do tempo. Este em vez de estar subordinado ao movimento passa a subordinar o movimento. Ocorre uma inversão primordial, onde o tempo se liberta do movimento. Deste modo, a questão de Flávia e das suas obras expostas está centrada em conquistar esse tempo que se libertou do movimento.
O desenho maior, feito em rolo, que dá nome à exposição: “Mergulhar os punhos”, pode muito bem ser um retrato fiel de várias imagens-lembranças que lutam por emergir e assim conquistar um lugar no desenrolar do tempo…o da artista. Uma lembrança… Qualquer participação do eu, qualquer manifestação de presença do eu implica uma resistência…um tempo como criação. Um tempo de dilatação, próximo daquilo que Martin Heidegger alude na sua Carta sobre o humanismo: “Antes de falar, o homem deve novamente escutar, primeiro, o apelo do ser, sob o risco de, dócil a este apelo, pouco ou raramente algo lhe restar a dizer”. Flávia oferece-nos assim um conjunto de obras que na sua concepção são um regresso ao escutar primeiro do seu ser, algo profundamente arriscado, pois esses são regressos que podem muito bem resultar num nunca mais voltar aquilo que se era.
Pedro Arrifano
Trocamos textos e muitas conversas à volta de tudo e de nada, sobre o lugar certo onde habitar, que é como quem diz, sobre um lugar de procura. Falamos sobre o deslumbramento e o tédio, como o fazem os amigos. Falamos da caça ou do que nos cai (oportunamente) em cima. Falamos da atenção como uma dádiva. Tiramos notas que depois partilhamos como aforismos ou inquietações ou fragmentos. É um privilégio.
Flávia, deixo-te aqui umas notas cheio dessa tua boa lama que me convida a entrar. Cúmplice, mas sem certezas, fascinado com as muitas dúvidas e perguntas que me causam os teus trabalhos quando os vejo ou quando me vêem.
Eis as notas:
“No lugar da unidade da frase, a fragmentação, uma fragmentação geral, a prevalência da fragmentação, toda a situação evolui para mais fragmentação. Mudei de mundo para aquele que, sendo desprezado, comanda.” *
Henri Michaux descreve os mecanismos de uma trip.
Ao descrever os ecos das muitas encruzilhadas do que é o corpo e do que é o espírito, penso que cria uma cumplicidade e a cumplicidade é sempre uma partilha abrupta, convulsa; nela estão incorporadas muitas coisas decifradas e por decifrar – é matéria do deslumbre – como os teus desenhos.
“Quando é que o meu corpo se liga ao meu espírito, pelo gesto e acto de desenhar, quando é que eles comunicam, o que é que eles pedem um ao outro?”
Pergunta sem fim e geradora de todos os princípios.
A dualidade do corpo e do espírito é intemporal, vibra poeticamente na tua inscrição: Mergulha os teus punhos.
Não é uma legenda, talvez a celebração de uma resistência activa contra o seu extremo oposto e mais radical – a desistência do suicídio. Mais uma vez, com coragem, incorporando-o, trata-se de procurar o que é invisível, abraçá-lo. Constatar tudo.
“(…) o tempo do espírito não é o tempo da matéria. Eu estou sempre à procura nos desenhos desta ideia de duração, do tempo que corre, um tempo onírico, um tempo que tem mais tempo do que o tempo que tem para se realizar”; “Quando é que o meu corpo se liga ao meu espírito, pelo gesto e acto de desenhar, quando é que eles comunicam, o que é que eles pedem um ao outro?”*
Nestes desenhos não há fundo, antes uma massa que expele formas e que é, ao mesmo tempo, um portal onde a mão pode entrar para esgravatar e resgatar a surpresa. Eco de encruzilhadas onde a curiosidade é a cumplicidade do corpo. Torpor e excitação ou calmaria eléctrica.
Nunca temos só um caminho. E se de repente o fluxo vai?
Como o trazer de volta sem desconfiar?
Sem chavões, pois não cabem nas fissuras de um rio ou na teia de uma aranha.
Muito importante: símbolos, signos, oráculos, visões – o que de vós é meu?
To be continued.
André Almeida e Sousa
*De Surpresa- Henri Michaux;
*Flávia Germano Barra, no seu atelier em Valada